quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Teatro maniqueísta



Lados de uma mesma moeda,
Jogada para cima num vagão em movimento.

Cores, reflexos, displasias e alguns rabiscos.
Um nada, de repente tudo.
Novamente, nada.
E aquela ranhura
Junto ao movimento dos trilhos.

Do antigo, a
Hipótese do novo, e
Aquele novo , talvez,
Tão antigo.

Um costurar de culpas,
Blasfêmias e indagações.
O apelo às palavras, ao som das
Letras tão estranhas a quem dizia.

Trepidação, falas entrecortadas e
A rapidez da paisagem;
- a impossibilidade da “re visão”.

A sensação do errado tão certo,
O inverso palpitando e a chuva caindo lá fora.
O saudosismo , entender que até do frear do vagão
grandes signos emanavam.

Dessa luta travada entre deformidades e semelhanças,
Nada se culpa, varreram a consciência e um instinto
Desconhecido gritou mais alto.

Da cabeça limpa e
De cada conselho a voz daqueles que
Fizeram e realmente farão parte
Do meu ciclo,
Da minha vida,
Tão incerta.

Se há pedidos ao novo ano?
Sim...
Um teatro ardente, intenso e inesperado.
E que ao final , eu ainda possa ouvir as palmas

e baixar minha cabeça com tranquilidade.



(Um adeus por 10 dias)


Lucas G.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Pois é...

- E depois disso , agiu-se pelo mais fácil e previsível?
- Sim, num estilo mais ou menos assim : "Agora , estou de mal ! Corte aqui que acabará tudo!
Porém, talvez esteja sendo o melhor pra mim!
- Mas por conta do que, exatamente, tal formalidade agora?
- Ouvir , minha gente! Conseguir ouvir alguém que cutuca a ferida mais funda e imperceptível a alguns olhos. Mas calma , calma!Digo apenas que passei , fica tranquilo! Sossega , coloque sobre os olhos e continue vivendo muito , mais muito feliz!

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Meu presente de Natal (ou o Último)



E de praxe, após semanas e noites de intensa felicidade, a véspera de Natal resguardava uma valiosa caixinha.
Nunca fui daqueles que via em acasos ou destino alguma informação a ser solenemente verdadeira. Nunca achei que houvesse razões desconhecidas ao próprio indivíduo e que fossem capazes de modificar ou entender detalhes que o reflexo no espelho denegria.
Porém, por motivos ainda tão indefinidos, vivenciei um ano, onde a descrença em tais aspectos tornou-se impossível. E, hoje, os acasos tomaram conta da roda de amigos e a cerveja desceu amarga.
Por diversos motivos tudo se entende. Não se gosta, são outras sintonias, medo, inexistência, retrocesso temporal, irritação, lástimas...
Para tudo, sempre acreditei que alguma falha realmente existisse, um vão no qual não pudesse ser preenchido, um excesso de fidelidade e transparência altamente desnecessário, uma atitude expositora por demais.
Atitudes e ações que clamavam e transbordavam dentro de mim e que sempre se expressavam em tentar ser nítido o suficiente para ser entendido. Contudo, ao mesmo tempo, minha inexperiência delegava a mesma inexpressão e dúvidas a algo tão evidente aos olhos dos outros.
Os comentários de alguns, a busca por informações de outros conduzia apenas a minha permanente necessidade de gritar: EU NÃO SEI! Pergunte a outrem!
Não conseguia mais ter o mesmo papel do passado, ver nos olhos das pessoas a hipocrisia de uma normalidade tão fictícia e num momento que tudo o que existia era altamente palpável.
Junto a tudo isso, a caixinha se abria lentamente. O engano das pessoas em achar que realmente tivesse existido mudanças e que aquele indivíduo tinha conseguido reavaliar e descobrir importância a alguém antes facilmente descartável. A insensibilidade das pessoas em se passarem por cartas a serem compostas num leque predefinido conforme as inquietações efêmeras de alguém tão superficial.
Mesmo assim, tentei entender.
O medo de se perder uma amizade, um amor, um companheirismo. O esquecimento de que reais relações não se perdem num convívio tão próximo. Retive em tais épocas, as caras feias, os bocejos, o silêncio, a seriedade. Absorvi o afastamento, os goles secos, as farpas, as inúmeras mágoas.
Porém , em algum momento, a caixa se abriu e dali não enxergou-se mais soluções. Certamente, pois de um lado a nostalgia e a angústia de ver uma reorganização tão instável e falha, e do outro, a satisfação em se ver em outra fase e o reaparecimento de relações baseadas em palavras bonitas e gostosos depoimentos de carinho e ternura.
Mas aos meus olhos aquela pessoa era conhecida e interpretada de uma forma que, talvez, nem ela tivesse noção. Totalmente compreensível acreditar na retórica dos bons usuários das palavras, entender as caras expressivas e os ápices de um diálogo altamente intenso.
Inegavelmente, apagava-se o som de um: “Deixa eu só falar” ou daquele “não tive vontade de responder”. Engoli acidamente os “oks”, as carinhas piscando na tela do computador. Consegui suportar a arrogância de textos e palavras tão expressivas, vi-me como errado , galguei a bipolaridade inexistente da pessoa referida, as tantas fases e esquecimentos repentinos.
Inesperadamente, hoje, olhei no fim da caixa e vi o antigo rubro poço. Aquele que há muito deveria ter visto, aquele que achei já ter enxergado. Entendo o cansaço dos colegas ao ouvir palavras repetidas, as inverdades tão afirmadas, mas adotar o “se permitir sentir” teria suas parábolas. E, talvez, possa ter sido apenas mais uma. Ao mesmo tempo, pode ter sido a última. Já não sei como meu corpo e o órgão titubeante iram reagir. De qualquer forma, apenas mais uma sei que não foi – acerca dos acasos, antes, tão desacreditados.
Não se abre o livro e encontra o conto perfeito, não se tem um abraço como aquele todos os dias, não se olha no espelho e se sente feliz com as atuais mudanças, não se despede com um frio toque e secura na véspera de Natal de um grande amigo , não se olha na face da pessoa sonhada e idealizada pelo amigo, não se beija daquela forma.
Foram acasos desprovidos da caixa aberta e do peito escancarado com verdade e tentativas. De qualquer forma, ouvir aquele : “E aí, beleza?” Fez eu acreditar que realmente nada havia feito de errado e solucionar a vontade de fugir do individuo e o silêncio nas conversas.
Estranhamente, ditados nessas horas conseguem explicar alguma coisa - “O feitiço virado ao feiticeiro”.
Fez tudo aquilo, ouviu-se tantas pessoas, sonhou com os inúmeros olhares, escreveu-se cartas, para ouvir de uma criança um “E aí ? Firmeza?”
Com certeza você não entenderia o que algum dia quis te dizer. Percebi que, talvez, nunca sofri , apenas sonhei, disse e fui sincero. Se paga um preço por isso? Talvez, mas prefiro ver-me nítido a ter de me encontrar apenas revelando segredos pessoais e ingerindo olhares.
Hoje, descobri ser feito de carne e osso. E a isso urro um muito obrigado.

Lucas G.
V

Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.
No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.

VI

Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou.
Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram
IV

Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.
Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.
III

Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.
Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.
Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperanças e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
II

Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.
Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.
Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
Será você aí de novo?
Pois não é possível.
Foi um presente.
Uma lembrança encontrada nas palavras, quem diria.
E inevitavelmente, parou de projetar-se o futuro para pensar um pouco no passado.


Aqueles dois de Caio Fernando Abreu

(História de aparente mediocridade e repressão)

Para Rofran Fernandes
— "I announce adhesiveness, I say it shall
be limitless, unloosen´d
I say you shall yet find the friend you were looking for." (Walt Whitman: So Long!)
I
A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.
Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá?conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.

"Indevíduo evitado"



De minha carne ressurge o sabor das inverdades,
As altas doses das hipocrisias e dos afagos.
Minhas unhas contam histórias,
Meus meandros, desejos.

E das
Trêmulas idiossincrasias
Ululantes nas veias deste parco
Jovem que vos fala, uma reminiscência ainda tão intragável.

Como um apêndice,
Um posfácio de portas destrancadas,
Das experiências realizadas,
Da indevida inatividade.

De nada sei que fiz, porém
A impressão esmiúça em minha pele
A marca de um primeiro amor;
Amor dos tantos erros,
Das impossibilidades e
De inverossímeis sintonias.

Caminhou-se pelo inverso,
Arriscou-se pelo fácil,
Focou-se no definível.

De certo, nada disso se contraria;
Mas ao fechar os olhos , uma nova visão fecunda.
A certeza de que agiu-se segundo o natural, e talvez
Fosse realmente este o destino – o não saber do desconhecido.

Das lástimas,
Das lágrimas,
Das lacunas,
Das lascívias tentativas.

Este soturno amante carrega para si
Um de seus maiores prazeres e
Sentenças: o cheiro de sua nuca.


Lucas G.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Tentação de Clarice Lispector



Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.


Fatídico

Nossos sentimentos não passam de definições arraigadas ao móbile acima do antigo quadrilátero vazado e do cobertor de lã banhado a leite e Hypoglos.

Lucas G.

domingo, 21 de dezembro de 2008

De um ano


Ainda se lembra dos pedidos noturnos, aqueles em que se prometia tantas coisas a algum superior e o apelidava de “papai do céu”. A força das palavras, os olhos bem fechados e a certeza que no dia seguinte o pedido seria concebido e tudo estaria bem melhor.Mas “papai do céu” há muito deixou de fazer hora extra ou ainda não se adaptou ao estilo drive thru do homem “pós moderno”.

Com o tempo, impõe-se ao menino um turbilhão de anseios, muito diferente daqueles tão sonhados quando o Batman era o companheiro de todos os dias. Entende-se que não haveria reza capaz de suprir tantas perturbações e incertezas. Um mundo, antes tão definido, escancara e bofeteia os sonhadores com promiscuidade, obsessão, intolerância, ira, desejos e inverdades.

E não havia o que ser feito. Agora, seria isso. Um lado crítico aflorado e a descrença total nas palavras da avó que, sem a menor idéia do que se passava, diz com segurança e um abraço: Calma, é só uma fase ruim!

Não seriam fases, e sim permanências. Aquilo tudo se mostrava e não haveria mais preâmbulos e meios-termos. Nada era tão indefinido quanto se pensava, nada era tão estático, o momento havia chegado e uma voz de dentro era sugada para fora.

Uma voz que não sabia o que gritar, mas que tanto podia dizer. Um som unido dos tantos que passavam pela mesma trajetória e dos tantos que não passavam. A música urrava misturas de amores, dos sonhos, lembranças reaparecidas. Adiar e esquecer tinham se transformado em verbos descartáveis - aceitar e entender , entender e aceitar.

Certamente, o medo latejava e a fugacidade de um ciclo , aparentemente, desenhado e planejado rompe-se bruscamente. E nessa tempestade tudo tem de parar, os sons calam-se e de dentro ouve-se finalmente a voz que há tanto tentava sair.

De mim , após tudo isso, talvez menos sabia. Mas a voz tinha gritado como o som de uma parada brusca, como o quebrar de um copo, como a chuva na janela de manhã bem cedo. Saiu , e lá do fundo , avistou-se. Ainda em tons fracos de aquarela, mas de cores radiantes: talvez, alguém tivesse realmente me ouvido.


Lucas G.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Intransponível covardia


Tudo dissonante,
um desequilíbrio entre membros
e vísceras;
um turbilhão de emoções
que chega apenas até
as falas sozinhas de dentro
do banheiro.

Anseio, porém sou
homem de pés de ferro.
As metamorfoses já não mais me atraem,
ao contrário , as desacredito.

Sou um,
mas um dos tantos.
Dos chatos,
Dos belos,
Dos vagos,
Dos tantos enganos.

Dessa vida teatral,
em que evidências
e razões estão no prato de cada dia,
engulo-as acompanhadas por justificativas e junto
ao molho de ponderações .

Mais que retórica incrível! – acerca os próximos descabidos,
dos leigos ignorantes.
Contudo , mais uma vez, tocam a campainha,
o gato puxa a toalha da mesa da cozinha
e um prato quebra.
Lucas G.

Aqui (ou Memórias do Cárcere) / Cordel do Fogo Encantado


Vou

Vou pregar na parede

Um pedaço de céu

Que você me mandou


Vou buscar outra constelação

Entre a noite que vai

E o dia que vem


Eu canto aqui

Eu olho daqui

Eu ando aqui

Eu vivo


Canto aqui

Eu grito aqui

Eu sonho aqui

Eu morro...(morro)


Vou

Vou riscar no meu braço

Um pedaço de mar

Que você me deixou


E criar outra recordação

Do primeiro lugar

Que acordei pra te ver


Eu canto aqui

Eu olho daqui

Eu ando aqui

Eu vivo


Canto aqui

Eu grito aqui

Eu sonho aqui

Eu morro... (morro)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Excerto do "O Ateneu" de Raul Pompéia

"Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos, como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora, e não viesse de longe a enfiada de decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam , alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo - a paisagem é a mesma de cada lado, beirando a estrada da vida."

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Sete dias


Não sei explicar,
mas foi mais ou menos assim:
Sem os olhos,
o homem viu mais e
fez de tudo aquilo ao seu redor,
um mapa – seu mapa.

Encontrou na sombra
do indescritível a chave para
um dos mais perfeitos relatos
humanos.

Fez de seus passos,
marcas cautelosas
e do desconhecido uma rota
para o final do arco-íris.

Quando aquele homem,
entendeu que olhos
eram complementos ,
doses extras ao ludibriante
equilíbrio,
fez dos cheiros, sintomas,
da natureza, redoma
e da cidade o abaixar a cabeça
de todos os dias.

Entendeu que só poderia
se entender sem seus olhos,
pois o mundo já não teria a
mesma graça se não imaginado,
se não personificado, se não seu.

Uma semana.
termino um livro, olho verde, cheiro fumaça,
tiro fotos, me sinto , sou sentido,
e aceito gostar.

Gostando, entende-se o sentir.
E das nuvens faz-se terra batida,
terra pisada.
Os pulsos cessam, e o sempre muda de nome.

Permitindo, fez-se existir e o mais feio
tornou-se belo.
Nesse instante, se ouve nos gritos de Elis, o dúbio:
“Que há algum tempo era novo, jovem ,
Hoje é antigo e precisamos todos rejuvenescer...”

Não era, jamais foi.
Mas , hoje, declaro-me feliz
com a indecisão de ser humano.

Tudo em uma semana e
mais cego do que nunca.

Lucas G.

Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.


O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma.


E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.


Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.


Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem.

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.


Fernando Pessoa, 29-3-1931

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Estupor

Toques leves,
sorriso maroto e
proximidade gradual.
Ao seu jeito,
sem um jeito
- inocente.
Era o dentro gritando
pro fora.
Era fora sonhando de dentro.

Entre altas risadas, eu esvaia.
Tocava minha pele,
umedecia os lábios e
tinha, ali, aquele ponto
certo e
indefinido.

Emoções do passado,
lágrimas de fotografias,
auto-descobrimento,
pulsação,
carinho e os tantos
desejos.

Entregar-me à
catapulta do acaso,
na atemporalidade
do destino tão nu
e iminente.


(E em curtas tragadas)
um Regresso
atenuado
de aglutinações
repentinas.
E as sístoles esbaforidas das
unhas não suas.

Uma Espanha ao fundo
- Alta e ensurdecedora.
[olhos estáticos e
pernas cruzadas]
o tempo havia se alongado,
e eu, agora, dançava
em artérias , hemácias e
sentidos.

Lucas G.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Então é Natal


Pra que tanta luz?
Jesus não nasceu num musical, muito menos, em uma escola de samba.Flashes, poses, caras e bicos. Infernal.
A família inteira junta - o que não acontecia por volta de um ano - olhando de dentro do carro ou andando pela Paulista a segurar e apertar bolsas e bolsos. Quase um comercial da margarina Qualy.

As crianças correm aos berros dos pais que temem do trânsito de pessoas ao vento gelado, e aquela mistura inebriante de mãos unidas e pisca-pisca parece apagar o porre do marido na sexta retrasada, a internação do pai da esposa, o filho que odeia estudar, o tropeço em um cidadão bêbado num dia de distração.




Se os seres humanos se comovem tanto com luzes e sons natalinos, façamos isso toda a semana. Aos famintos, Jingle Bells; aos favelados, uma árvore jorrando neve artificial e a todos aqueles que se matam nas horas extras para comprar a boneca dos sonhos da filha mais nova, um Papai Noel do tamanho de uma criança de quatro anos que dança ao som de "macarena".
É lindo o Natal, o espírito e tudo o que o envolve, mas um dia da semana não trasforma um ano de trabalho duro e as visitas a uma rua inteira de bancos fantasiados de vermelho e branco com ursinhos e renas compondo o cenário, não tiram o pé da lama de ninguém.
Ao invés de mais uma vez repetir o que quase cem por cento dos paulistanos fazem, por que não visitar um asilo? Já pensou em doar agasalhos a uma casa que cuida de crianças deficientes? O que acha de distribuir comida na rua para os desabrigados? E doar roupas após as cenas de enchente que assolaram o Brasil na semana passada?


- É, entendo! A Tv parou de passar, né? Ufa , ainda bem que acabou tudo!
- Aquilo que está distante é tão dificil de imaginar, não é mesmo? Pois é, o melhor é ver as cores e as tantas inovações deste Natal, pois isso sim vale a pena.
Boas comemorações a todos ... e muita luz nesse Natal, com certeza!

Lucas G.












sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Confidência

Ah!
Esse zunido,
essa falação,
blá blá blá.

Tanta elegância,
a postura perfeita,
garfo na esquerda, faca na direita.
Ah! Tô de saco cheio!

Cansei , entendeu?
Falta apenas coragem ,
de chegar lá e fazer!
Mostrar que tenho pele,
que sou de carne e osso.
Fico bêbado, cago, mijo.
O que eu posso fazer?

Erro?
Vixi , e como!
Mas erram também comigo.
Sou tachado de tudo e mais um pouco.

Mas vou fazer o que?
A conversa, as vezes, deixa de ser solução,
e você espera o tempo. O tempo nao soluciona.

Aí enrijece. Puta! Vira quase pedra.
Você vai e fala. Pra quê? Meu Deus..
Ira frenética, raiva adormecida e uma tonelada
de combinações no estilo self service.
Depois vem o descaso, a pose e o desinteresse.
E o pior... não sei o fim disso, não!

Mas , oh! Vou falar baixo,
não quero ninguém escutando nada não!
(sussurros)
Eu sei ler nas entrelinhas...

Tem mais essa...
Algumas pessoas tem o dom de acertar,
tô devendo uma cerveja pra você, viu!
Além de quebrado completamente,
devo uma gelada!
AH ! Quero que se foda!

Um brinde a ...! A porra sei lá, um brinde!

Lucas G.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Desmaio



Pincela,

retrunca,

retorce,

exala.


Experimenta,

efetiva,

afirma,

alegra.


Pinta,

inverte,

não cabe,

esforça,

machuca,

extirpa.


Faca,

fomento,

finca,

finge,

morde,

morre.


Estático,

sonso,

moribundo,

intransitivo,

inerte,

sádico.


Portas,

janelas,

madeira,

teto,

prego,

furo,

sangue.


Tonto,

efêmero,

escravo,

e só.

Lucas G.

Amor é uma questão de volatilidade



Cada letra digitada retém um significado, um propósito e minha maneira de entender a vida. Tenho como concepção , a falta de entendimento humano para com sua própria essência – fator que amedronta, mas assola .
Para aqueles que pouco entendem de si próprios e do que os cercam, olham meus escritos e vêm a mais pura repetição de temas, de imagens e recursos lingüísticos.
Porém, aqueles que também não se entendem, mas que fazem desse não entendimento algo volátil e permeável, acredito na diferenciação e de uma abordagem singular de cada estrofe. Como um copo de um líquido que assim que cheio até a boca, se esvaziasse em segundos, tendo de repetir sempre a mesma ação para conseguir um copo cheio.
Entendo o ser humano como este copo. Incompleto, encontra nas aparências, no provisório, no inquieto e no irrefutável a chance de se ver cheio. Esquecendo-se sempre que esta estaticidade é fugaz e que em segundos tudo voltará ao vazio.
Às vezes, esses copos enchem-se a base de jatos de desdém e intolerância. Às vezes, o passar da mão em uma pedra cheia de moluscos ou uma única lágrima após um belo poema faz quase o líquido transbordar. Nessa intermitência, o homem-copo encontra no amor a chance de se ver sempre cheio, e junto a isso, cria uma batalha de auto-satisfação.
A batalha é eterna, cega e irracional. Mas permeia desde a maneira de se escovar os dentes até a forma de apagar alguém querido. O copo, ou talvez, o homem esquece que conseguia ver-se cheio de diversas outras formas, não somente a partir de amor.
O líquido passa a ser droga e o encher do copo um vício. Os indíviduos envidraçados deixam de se contentar com sua incompletude. Há ainda aqueles que dizem poder cultivá-la, porém se os bares e as conversas alcoólicas dissessem a verdade o ser humano nem mais aqui estaria.
Ser incompleto incomoda, invade, retorce, distorce e machuca. Aceitar tal fato é abrir mão da crença de que só o amor traz felicidade. Palavras são belas, parágrafos perfeitos, mas o mundo não se fez dentro de um livro ou de uma linda película e aquele discurso sempre repetido, surge como a máscara perfeita e a memória da última vez que conseguiu encher seu copo sem ser pelo amor.
E os copos ali ficam . Na perfeição da retórica, no sigilo dos sentimentos, na reprovação, na felicidade da dor do outro, no choro, na risada, na falsidade e na amizade. Um jogo de encher e esvaziar eterno.

Está difícil ver o amor como solução...
Lucas G.

Repentina

Aparece,
Adentra,
explode
E diz
Tudo.

Disse tudo o que pensava.
O que eu não esperava.
Tudo aquilo das histórias de
Gibis.

(Sentimentos em palavras,
Olhos retorcendo e as
Mãos trêmulas)

Aquele tudo perpassando um
caminho já tão enegrecido
e desacreditado.
-Não quero temer mais!
Entendas isso.

Mas foi feito o que o escuro pedia.
Foi feito as ordens do âmago.
De tão longe, pára em minha casa
à explicar com força e verdade o
Que trepidava.

Ontem, me fez acreditar em filmes.
Ontem, saiu da regularidade.
Tornou-se hoje, talvez amanhã.
Não espero.
Vejo apenas gritos e seus passos
Adentrando os meus,
Como uma boa música,
Como um beijo,
Como um banho quente em dias de frio intenso.


Lucas G.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Meus sonhos são imagens refletidas (ou Do filme de ontem)


E pensar que do que da tela vinha,
já havia corrido nas veias.
E reter que daquela história,
o roteiro e o diálogo não
me eram incomuns.

As películas sugam minha atenção
e denunciam o que pulsa em cada fragmento,
a cada toque,
nos sonhos,
nos espirros e
suspiros.

Sou um filme,
Somos tantos.
Filmes de finais incertos
e dos roteiros parecidos.

Carta ao pai (www.psicando.blogspot.com)



Às vezes a vida me faz acreditar que ela existe sem mim. Que ela acontece e eu vivo. Que ela me independe. De vez em quando grita independência ou morte. E eu, mãe cuidadosa que sou, morro.

Sempre me disseram que nessa fase fica assim mesmo. É que é duro aceitar.

Outro dia ela pegou sua bolsa e me disse que ia dar uma volta. Eu deixei. Pedi pra que não demorasse. Ou que pelo menos me ligasse se fosse dormir fora.

E ela ainda não voltou. Me ligou, outro dia. Falou que tinha saído sem saber pra onde ir. Só queria tomar um pouco de ar. Até que, num bar, encontrou a sua. Passaram a noite juntas, disse que foi bom.

Só que você parece ter levado um tapa na cara e descontou nos outros. Ligou e mandou sua vida voltar. Sabia que ela tava bem, mas não era aquilo que queria que ela fizesse. Vida boa não passa a noite na rua sem avisar. Você, todo bravo, obrigou sua vida a tomar jeito, e a deixar a minha dormindo, na cama, ainda nua.Ela não quer voltar. Não sabe o que fazer. Diz que ainda tem medo de me encarar. Eu também tenho. Sei que tenho culpa por segurá-la demais e, de repente, agora, deixá-la sair por aí, sozinha. Haveria de se machucar.

Não sei, agora, o que vai ser da minha vida sem a tua. Ela disse que, por enquanto, se não dá pra ficarem juntas ela prefere ficar sem mim também.

Dói. É difícil para uma mãe ouvir isso.

Mas eu entendo.

Só te escrevo pra te deixar a par da situação. Pra te assumir que, se você consegue controlar assim sua vida, eu não consigo. Mas prefiro uma vida livre a uma acorrentada por planejamentos.Se um dia ela bater em sua porta, por favor, deixe-a entrar. Que seja pra elas resolverem as coisas e não mais se verem. E não estranhe também se um dia elas fugirem juntas.

Fica apertado o coração de uma mãe numa situação dessas. Você deve imaginar.

Mas se continuar decidido, se continuar preferindo assim, nos avise. Talvez se acelerem as coisas.

E se minha vida não quiser voltar, deixo-a a você. Por mais que não queira. Ela senta do lado de fora e espera.Enquanto isso, engravido.
(escrito por Li)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Tragadas sinestésicas e um pedido

Foi tudo no compasso de um cigarro.
As tragadas adormeciam a inquietude
E as pálpebras se fechavam a cada lampejo
Das luzes natalinas.

Deito. Ardósia gelada. Uma e quarenta cinco da manhã.
Fecho os olhos e sinto a Lua.

Abro-os e pinta o reflexo no vidro,
Como uma estampa intocável,
Como um cheiro de chuva,
Como o acalento do mato.

A cidade cantava em agudos e graves.
As freadas bruscas, as construções, o martelar incessante
E minha música ao fundo.

O cigarro já no filtro. As mãos se abrem e encostam-se à pedra mais fria
- A estrela mais brilhante chama a atenção.
E da noite
E dos sonetos,
Do frio das pedras que seguravam meu corpo,
Da minha música,
E entre freadas e martelos,
Faço um pedido.

Sem voz, sem corpo,
Um pedido cálido e inerente,
Porém feito a estrela mais brilhante.


Lucas G.

domingo, 7 de dezembro de 2008

"Dá-me a tua mão" de Clarice Lispector

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Deste sim!

Não quero pensar mais,
Como naquela chuva.

Não há mais propósitos para ferpas,
Como nas fotografias.

Inconsciente ou proposital – perda de tempo.
Existe apenas e por existir, isso basta.

Sei o que quero,
Não sei como digo e
Tenho medo do que faço.

Como a reconstrução daquele cristal quebrado,
Onde não se sabe o que sentir.
Como aquele brinquedo de dentro da gaveta que, após um tempo, surge a vontade de brincar novamente.
Como o gosto do impossível, do improvável, do nunca, do sempre,
Do existente.

E existe.
Talvez, junto a um mar de pedras em caminhos nítidos.
Talvez, reprime-se aquilo que é tão palpável.
Talvez, tudo.
E estampam-se os pormenores,
E enxerga-se a raiva inteligível.
E se conhece,
E se ama.

Basta isto ser entendido. Basta?
Basta transbordar. Basta?

Basta existir... até quando?

(Nunca havia me perguntado isso)

Lucas G.

Empoeirado


A sutileza da caixa pequena
no fundo do armário.

O recorte da boca na face do espelho,
o adverso de superfícies tortas.

O ser diferente ansioso por semelhanças,
e o melhor esconderijo , aquele do lado do pegador.

Letras e palavras que reluzem pura e constantemente,
a dificuldade de absorção do silêncio, do cálido, do gelo.

Porém.
A caixinha abriu-se e de lá saiu
uma carta que há tempos não abria.
Uma folha de papel que tinha prometido
não ter suas linhas mais expostas e seus rabiscos
relembrados.

Ao vê-la, gritei.
E disse. Voz - há quanto não fazia isso.
Disse , invertendo. Disse , ouvindo.
Disse, o amor. Disse, o pesar. Disse ...
Desdenhoso e
engolfado.

Quão estranho,
a carta, agora, não queria se fechar.
Lucas G.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Veneno


Ouviu , hoje, aqueles cantos?
O estrondo , a sinfonia pra ti?
Será que percebeu
o anseio,
o desejo
pelo sorriso,
pela vivacidade?

Sentiu o cheiro da rua,
lá fora.
Saiu,
marcou a calçada?
Pisou na bosta,
enrijeceu a face com o cheiro da fumaça?

Abro as mãos e
tudo cai,
meus gritos ecoam
e meus passos
descartam –
como aquele três preto da tranca, lembra?

Grito alto,
aceno,
pulo,
sinalizo e
Vão.
Esboço,
rabisco,
os restos de borracha
colecionados pelas crianças.

Estou rouco, mas sentindo.
Estou suando, mas ali.
Estou errado.

Sou um tempo,
sou o fundo,
o intragável conhecedor
que quer gritar
alto
pra sair.
Lucas G.

O vento da praça e folhas secas

Ósseo,
orgânico,
ostenta e
fecha.


Volúpia,
vermes
adentrando
das vírgulas
aos sonhos.


Precoce e
veemente.
Criado,
ensejos,
metáforas
- as léguas.


Como as folhas secas,
as sementes,
o odor da rosa e
os espinhos.


O ciclo,
do nascer,
intensficar
e
secar em formas pálidas,
em rigidez e estrutura
morta.


Natural,
existente,
expressão dos soslaios,
oriunda,
enegrecida
germina,
germina,
existe.
Coexiste .


Flor dos tantos brotos,
favo do líquido doce,
passado,
presente e...
futuro.


sussurro dançante:
do vivo se faz o morto,
e como da morte faz-se o vivo?


A resposta está na natureza, e
na simplicidade de fazer parte dela.


Lucas G.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Um texto

Hoje,
escrevi um texto.

Um texto que não consigo olhar,
mas eu quem escrevi.

Espreito. Vejo tudo
e enxergo nada.
(Eco e ego.)
Mas fui eu quem escreveu.
Sei o que lá diz.
Mas não posso fitá-lo.

Escrevi um texto,
um estupro, um gorfo.

Escrevi o primeiro pôr do sol que
não posso enxergar.

Aquilo tudo saiu de mim,
e não foi necessário
nada apagar.

Como se tudo estivesse pronto,
como se o gole já tivesse sido virado,
a faca cortado,
o sangue esguichado,
como se eu tivesse chorado;
mas sem as lágrimas, pois elas estão no texto
e não posso encará-lo.

Hoje , eu escrevi um texto
que me deu medo, insegurança, anseio, ira, desgosto e burrice.
Me deu doses daquilo que por tanto fugi .

Escrevi um texto,
um dia eu o mostro.
A espera desse dia chegar,
buscarei adentrá-lo.
Prometo!

O último voo do flamingo/ Mia Couto

Me virei: era minha mãe. Ou seria, antes a visão dela. Pois ela já há muito tempo passara a fronteira da vida, para além do nunca mais. Naquele momento, porém, ela surgia das folhagens, envolta em panos escuros, seus habituais. Não em saudou, simplesmente me orientou para junto do meu abrigo. Ali se sentou, aconchegando-se na capulana. Fiquei mudo e miúdo, à espera. Se temos voz é para vazar sentimento. Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que ela transitara de estado, eu acedia, completo, às visitas dela.
- Como é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi pergunta com pergunta:
- Há lugar, hoje, que não seja de bichos?
Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é gente. Porém, ela permaneceu calada. Rodou pelos arbustos e desfez folhinhas entre os dedos. Apurava perfumes e levava-os lentamente junto ao rosto. Matava saudades dos cheiros.
- A guerra já chegou outra vez, mãe?
-A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.
-E a mãe anda fazer o quê por essas bandas?
Eu queria saber se tinha terminado sua tarefa de morrer. Ela explicou-se lenta e longa. Andava com uma bilha a recolher as lágrimas de todas as mães do mundo. Queria fazer um mar só delas. Não responda com esse sorriso, você não sabe o serviço do choro. O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é , em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano. Pensava ela por outras, quase nenhumas, palavras. E suspirou:
- Haja Deus!
Lembrou-me como ela despertava, ants, toda alagada. Não houve, depois que meu pai nos deixou, uma manhã em que o sol a encontrasse em panos secos. Sempre e sempre ela e os choros. Todavia, isso fora antes, quando ela padecia da doença de estar viva.
- Não fique aqui que esses caminhos ainda têm o pé da guerra. A pegada está viva!
- Estou bem aqui, mãe. Nem me apetece regressar.
Ficámos ali horas trocando nadas, simplesmente adiando o tepo. Alonando o milagre de estarmos ali, na margem da floresta. Já entardecia, ela me avisou:
- Volte para a vila, há-de acontecer tantíssima coisa.
- Antes de ir, mãe, me lembre da estória do flamingo.
-Ah, essa estória não gasta...
- Me conte, mãe, que é para a viagem. Me fata tanta viagem.
- Então, senta, meu filho. Vou contar. Mas primeiro me prometa: nunca siga pelos carreiros onde seguiam aqueles homens que você espreitava há um bocadito.
- Prometo.
Então , ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
- Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que não cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar sobre o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios e rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
-Mas vai voar pra onde?
- Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou - que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
- Por que essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvalorizava seu feito:
- Ora, aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do magal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo coo se descobrissem, apenas então, a sua total beleza.Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
- Por favor, não vá!
-Tenho que ir!
A avestruz se interpôs e lhe disse:
- Veja ,eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
- Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou. Queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
- Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia em líquido, nos olhos dos bichos.
Então, o flamingo se lançou , arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, aqs transparentes páginas do céu.Mas um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se avermelhara. Trasitava de azul para tons escuros, rocos e liláceos. Tudo se passava como um incêndio. Nascia assim o primeiro poente.

O seu olhar


"O seu olhar lá fora,

O seu olhar no céu,

O seu olhar demora,

O seu olhar no meu,

O seu olhar, seu olhar melhora

Melhora o meu.


Onde a brasa mora e devora o breu

Como a chuva molha o que se escondeu.

O seu olhar, seu olhar melhora, melhora o meu.

O seu olhar agora, o seu olhar nasceu,

o seu olhar me olha, o seu olhar é seu.

O seu olhar, seu olhar melhora, melhora o meu... "

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O meu líquido



Dos meus textos esguicham rubras quantidades de um líquido viscoso, porém palpável – diria até ludibriante.
Sem temer, num dia de sol e temperatura amena, resolvo o tocar.
Da simples ação à irremediável lembrança. Os gritos do avô na cadeira de balanço, as palavras elogiosas da tia favorita e as enfáticas expressões de um pai desacreditado.
Lembrei-me que eles viam o meu líquido de outra forma, com outra cor, até a textura era diferente da minha. Alguns o enxergavam adentrando cada palavra, outros chegavam ao ponto de dar-lhe nome. Diziam a inexperiência e a jovialidade do discurso.
Contudo pra mim, jamais distingui ou defini aquilo que escrevia. Possíveis aspirações, dramas cotidianos, medos, paixões, descasos e acasos, descrença, era disso que meu líquido sobrevivia.
Um dia, pensei que apenas eu o enxergava. Que apenas eu podia encontrar o meu líquido saindo das frias teclas de uma máquina de escreve-apaga. Ou seria eu apenas que o entendia?
Nunca havia definido seu real aspecto, mesmo porque eu nem sempre o via. Ás vezes do rápido passar de teclas, a minha frente, apenas palavras apareciam. Desconexas. Entrecortadas e temerosas – e dali nada escorria.
Em contraposição, vivia momentos, onde as palavras já não eram nem mais visíveis, e nesses dias eu me encontrava.
Depois do toque e diversos episódios – não necessariamente nesta ordem- entendi o por que daquela visão. Das minhas palavras nunca busquei entendimento, respeitabilidade ou absorção. Jamais quis que enxergassem a mesma coloração que via do meu líquido, ou que chegassem a vê-lo.
Para alguns, ingenuidade; para outros, simplórias palavras de conforto. Infantilidade e arrogância, para alguém.Talvez, entendimento e reflexão.
O poder daquele meu líquido era inimaginável e apenas o absorvi quando quis tocá-lo, quando quis entendê-lo.
Por que tanto escrevia? Por que, às vezes, precisava me encontrar.
E era só assim.
Ainda não descobri se, algum dia, alguém o enxergou ou viu a coloração que eu ainda vejo. Não eram de palavras impensadas que aquele mistério se formava, e sim do meu entender e das minhas palavras – quando eu me encontrava.
Lucas G.