terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O último voo do flamingo/ Mia Couto

Me virei: era minha mãe. Ou seria, antes a visão dela. Pois ela já há muito tempo passara a fronteira da vida, para além do nunca mais. Naquele momento, porém, ela surgia das folhagens, envolta em panos escuros, seus habituais. Não em saudou, simplesmente me orientou para junto do meu abrigo. Ali se sentou, aconchegando-se na capulana. Fiquei mudo e miúdo, à espera. Se temos voz é para vazar sentimento. Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que ela transitara de estado, eu acedia, completo, às visitas dela.
- Como é, filho: vive no lugar dos bichos?
Devolvi pergunta com pergunta:
- Há lugar, hoje, que não seja de bichos?
Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é gente. Porém, ela permaneceu calada. Rodou pelos arbustos e desfez folhinhas entre os dedos. Apurava perfumes e levava-os lentamente junto ao rosto. Matava saudades dos cheiros.
- A guerra já chegou outra vez, mãe?
-A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.
-E a mãe anda fazer o quê por essas bandas?
Eu queria saber se tinha terminado sua tarefa de morrer. Ela explicou-se lenta e longa. Andava com uma bilha a recolher as lágrimas de todas as mães do mundo. Queria fazer um mar só delas. Não responda com esse sorriso, você não sabe o serviço do choro. O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é , em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano. Pensava ela por outras, quase nenhumas, palavras. E suspirou:
- Haja Deus!
Lembrou-me como ela despertava, ants, toda alagada. Não houve, depois que meu pai nos deixou, uma manhã em que o sol a encontrasse em panos secos. Sempre e sempre ela e os choros. Todavia, isso fora antes, quando ela padecia da doença de estar viva.
- Não fique aqui que esses caminhos ainda têm o pé da guerra. A pegada está viva!
- Estou bem aqui, mãe. Nem me apetece regressar.
Ficámos ali horas trocando nadas, simplesmente adiando o tepo. Alonando o milagre de estarmos ali, na margem da floresta. Já entardecia, ela me avisou:
- Volte para a vila, há-de acontecer tantíssima coisa.
- Antes de ir, mãe, me lembre da estória do flamingo.
-Ah, essa estória não gasta...
- Me conte, mãe, que é para a viagem. Me fata tanta viagem.
- Então, senta, meu filho. Vou contar. Mas primeiro me prometa: nunca siga pelos carreiros onde seguiam aqueles homens que você espreitava há um bocadito.
- Prometo.
Então , ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
- Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que não cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar sobre o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios e rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
-Mas vai voar pra onde?
- Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou - que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
- Por que essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvalorizava seu feito:
- Ora, aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do magal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo coo se descobrissem, apenas então, a sua total beleza.Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
- Por favor, não vá!
-Tenho que ir!
A avestruz se interpôs e lhe disse:
- Veja ,eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
- Não posso, me cansei de viver num só corpo.
E falou. Queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
- Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia em líquido, nos olhos dos bichos.
Então, o flamingo se lançou , arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, aqs transparentes páginas do céu.Mas um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se avermelhara. Trasitava de azul para tons escuros, rocos e liláceos. Tudo se passava como um incêndio. Nascia assim o primeiro poente.

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