domingo, 29 de março de 2009

Clivagens e fortalezas

Aquele discurso pronto já não apetecia mais. As mentiras travadas como resposta para uma guerrilha dos cavaleiros desarmados. Sanguinária e sujeita à possíveis difamações. Quer dizer, assim ainda se pensava.
Um celular que toca ao som das séries de oito digitos passados. O ressonar da história sem preâmbulos, da pauta dos imediatos, do cuspir em resposta ao gosto ruim na boca, o azedo sabor da contextualização. Em suma, de um conto sem final e engolfado em omissões e mentiras. Recorrentes frases de efeito.
O papel que nem rascunha mais, injeções de literatura para um relato sem intempéries, que deu pra se chamar de vida.
Sopros e distúrbios. Caminhos e retórica. Soluços e sexo.
Portas para um preenchimento tão longínquo. Que se faz da música, das palavras, do prazer, do desgosto. Que, hoje, se faz de tudo e de uma festa repleta de individuos transbordando em orgasmo, ninguém se enxerga. Corpos irregulares, massas bestiais circulando entre beijos e danças sensuais.
O susto ao se olhar de fora. Apenas cadeiras vazias, fumaça, copos com marcas de batom e o sax tocando ao fundo. Natureza morta.

Lucas G.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Um de seis



Segunda, cessa o encanto,
Esvaio em sádicas inquietudes,
Alerto angústias e
Transpiro agonia. Lúgubre e
mórbida.

Dos tão certos erros,
Do prazer transtornado e doentio,
Das vagas certezas,
De um escuro. Simples.

Segunda, os ângulos transgridem caminhos,
Rechaçam em pós de borracha e o diafragma ulula.
Inquieto e arguto, vagueio em gagueira e sinapses.
Segunda, inexiste

Na asfixia dos sem vida,
Dos sem cor,
Sem ter e
Sentir.

Sóbrio,
Refaço e recolho as lembranças dos dias já antigos,
De um ontem de misturas incertas e cara de amanhã.
Límpido e novo.
Mas ainda com espírito do primeiro dos outros longos seis dias e

estampidos tão próximos quanto os pássaros de outras terras.


Lucas G.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Diadorando/ Zé Modesto



"Tempo, inteiro de tantos dias,

contou-me num desses tantos

que a vida escolheu o sertão

escuro e frio do humano

e lá tratou de esconder

calor de intenso tutano

difícil de campear


garimpeio e o verbo em pena

vagou no vão das palavras

confins de terras, secume,vazio intenso das almas

pro esteio dos Campos Gerais

ganhar no aprumar da vista:

paragens de terra plana


depois de tanta procura

no farto ralar dos calos

no pó passado das pernas

se ver, chegança de espera

nos pés o cerne do andante,

o ser e estar do trajeto


e o tempo velho então disse

que o que balança as carcaças

e torna o pulso pra os homens

é arte feita em palavra:


o que se chama poesia


que em todo canto tem fonte,

nascentes no mundo poucas

e nas Gerais deixa os versos

escorre beleza em prosa


é o verbo pintado humano

em tons de Guimarães Rosa!"

segunda-feira, 9 de março de 2009

Sem título

Talvez mais um simples quadro na parede da memória. Relíquia. Quem sabe um outro momento dos tantos que sei que virão.
A luva para aquele instante em que se abre a geladeira e não se tem o que pensar. O gracejo dos segundos de sonho acordado.
A primeira vez em que vetores fizeram algum sentido. Meus sentidos acobertados e minhas cobertas sem sentidos.
Um distúrbio? O além de mim, a sensação de pedra, de rocha, de realização. Para mim, de mim e meu.
O toque, sem jeito, mas torneado. Da cabeça baixa ao alarme por qualquer movimentação. Verossímil.
Manias engolfadas nos nostálgicos corredores de um colégio particular. Controverso, enganado, estupefato. Tudo jogado, pisado, queimado e morto. E cálido.
Mas desses amanheceres o tamanho da vida! Grande , mas de olhos cegos. E que de lapsos irremediáveis escancara azuis, amarelos e vermelhos jamais vistos. São lindos e vale muito a pena os ver.

Lucas G.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Sorriso de vidro



Eu olhei.
Olhei e não te vi.
Era vidro,
Caco.
Eram aqueles
momentos.
Vividos.
Antigos.
De vidro.

Lapidado,
Cobiçado,
Divisível.

De vidro, o sorriso.
Os cacos á frente
Ruídos.
De todos os dentes,
Sorriso vivido.

Centelha,
O sopro e o antigo.
A dor
- passado nocivo.
Ainda de vidro.

Vagueia
Uma ânsia passageira,
Dos livros,
Dos ditos,
Dos tantos sonhos perdidos.

Envolto,
Sofrido,
Libido.

Sigilo, retorne.
Ao seu antigo.
Antigo estado de vidro.
Abro os olhos, e tudo já tinha escrito.
Em todos aqueles cacos ruídos.
(Dedicado à Mariana Quintino e aos nossos papos musicais)


Lucas G.

domingo, 1 de março de 2009

Eduarda

Meu êxodo foi interno, saca?Mano, adoro essa palavra: Êxodo. Se liga na pronúncia.
Voltando. Desculpa aí! Então, eu não agüentava mais. A faixa na cabeça, o colarzinho de pérolas dado pela tataravó, o vestidinho amarelo combinando com margaridas. Puta falta de originalidade, meu! Junto com tudo isso, ter saco pra agüentar essa porra de mania em falar tudo no diminutivo.
Chegou um momento que eu cansei de tudo. Mostrei o dedo do meio para todo mundo e fiz questão de ser oposta em tudo.Todo mundo nessa época tinha uma brisa: Maconha, música pop, calça justa, ser loira. A minha vibe era ser contrária. Tinha que usar rosa? Eu virei roqueira. Tinha que usar shorts na aula de Educação Física? Eu colocava calça de moletom de um número bem maior que o meu. Menina sentava de pernas cruzadas? Pois bem, eu arregaçava as minhas e quase fingia coçar uma genitália inexistente.
Não tinha nascido para viver conforme aquilo que me ditavam. A sociedade era nojenta o suficiente para inventar estereótipos, fazer de bundudas sem cérebro apresentadoras de televisão e criar cotidianamente um novo tipo de repressão ou fobia. Eu que não faria parte disso.
Continuei nessa vibe mó cota! Fui chamada de lésbica, algo que também já tinha provado só pra ser contrária, mas percebi que não curtia mesmo. Fui ridicularizada, aquela coisa bem tosca de filme americano, saca? Tipo, o “cartaizinho” com uma piadinha de mau gosto. Vixi! Passei por muito babado nessa vida. Usei uma pancada de drogas e fiz tudo isso por que eu tinha que ser contrária. Não podia usar, vinha com aquelas porrada de cartaz sobre a campanha da fraternidade, mandava toma no cu e arranjava na hora para experimentar. Quase fui expulsa de casa, ficava de castigo duas vezes em cada semana. Foi um bagulho tenso.Não me culpo, eu precisava disso tudo , entende? Mas foi uma puta bad trip.
Foi quando conheci o Marcelo, menino de rua, sem pais, morador da praça da Sé e gente boa pra caramba. Saindo de uma balada, que minha mãe havia me proibido de ir, comecei a trocar idéia como a gente sempre fazia. Sei lá, acendemos um e começamos a falar da sociedade, do que a gente não concordava. Ele falando dos problemas sociais e eu da minha necessidade em ser contrária. Ele falando que tinha apanhado na noite passada e eu falando dos meus problemas com minha mãe. Foi quando do nada ele virou para mim de boa e falou:
- Mina! Vo ser sincero, tá ligado! Cê fica nessas vibe de querer ser contrária, mas tu já percebeu que de qualquer forma vive pela sociedade. Cê tenta fugi da sociedade, mas tu parte dela pra ser contrária.
Puta , aí foi foda! Nessa hora me senti um lixo! Por que eu realmente não tinha me tocado. Eu querendo de qualquer forma ser contra a tudo que a sociedade impunha, acabava fazendo minha vida a partir dela. E ser contrária não é isso,saca? Ele falando dos milhares de problemas que ele passa, e eu filhinha de papai falando dos meus novos piercings e minha tatoo com o símbolo do anarquismo. Porra meu! Muito errada.
Voltei para casa chorando pra caramba. Troquei idéia com minha mãe a noite inteira, pedi desculpas pro meu pai. Não tinha como a gente saí fora da sociedade, saca? Ela faz nossa vida,o ser humano ganha e perde vivendo assim. Comecei a ver os pontos positivos da vida em grupo e comecei a entender que qualquer extremismo é cilada.
Claro que eu podia ser contra, mas ao invés de ser da boca pra fora. Que eu fizesse da minha oposição algo palpável. Que eu reivindicasse, lutasse por aqueles que não tiveram a mesma sorte que eu tinha.
Sei lá. Ao mesmo tempo, curti pra caramba essa minha fase. Como disse, eu precisei dela para me entender e enxergar no que eu realmente era contrária.
Hoje, não sou um exemplo de feminilidade e bons modos. Mas discutir comigo não se tornou mais perda de tempo e falação, saca? Criei argumentos e é muito louco isso.
Pronto? Gravou? Ficou bom será? Nossa eu tava suando.

Lucas G.

O vendedor de mancebos

Santiago Nazarian

O verão lhe trazia um ultimato. Vinha voando pela janela aberta e deixava para trás véus de uma cerimônia que eles não tinham. Sem cerimônia, os cupins invadiam seu apartamento, devoravam seus móveis, o deixavam cada vez mais próximo do chão. O chão também era de madeira, isso o fazia pensar que, em breve, ele afundaria num buraco sem fundo. E não era nada poético pensar assim.

Ele era cronista, e isso lhe trazia cada vez mais vergonha. Não estava esclarecendo os fatos, como seus colegas jornalistas, nem sublimando-os, como seus amigos escritores. Ele tinha compromisso com a verdade, mas essa não poderia lhe salvar. Ele observava o mundo pela sua janela aberta e o mundo era cinza, poluído, dava de frente para uma construção que nunca terminava e onde não havia nada para olhar, apenas sons a martelar.

Ainda assim, tinha de manter a janela aberta, não apenas para a observação de suas crônicas, mas pelo verão que esquentava o apartamento sem ar-condicionado e que o sufocava com promessas de dias ainda piores, ainda mais quentes, ainda mais baixos.

Os cupins entravam em busca da luz acesa e da madeira latejante, então ele apagava a luz e esperava que o compensado de seus móveis não abrisse grandes apetites, mas abria. E a luz fria da tela do computador queimava seus olhos, quando a luz quente do teto não podia acalmá-la. E a luz quente do teto dançava com os véus sendo jogados e os cupins caindo ao seu lado e tudo o que ele queria era um inverno para desistir. Mas o verão lhe trazia um ultimato.

Ele teria de terminar aquela crônica antes de os cupins o colocarem no chão. Ele teria de terminar aquela crônica antes que o mês virasse e o afundasse nas contas do mês seguinte e ele não pudesse mais adiar sua morte, porque ele não teria como sobreviver. Era preciso escrever.

Formado em jornalismo, envelheceu sem nunca conseguir exercer. Viveu de uma série de bicos, às vezes até com qualidade, formando um currículo que só poderia fazê-lo gabar-se de sua cultura, de suas leituras, de saber escrever. Coisas que nenhum editor poderia medir. Coisas que valem muito pouco quando ninguém realmente sabe ler.

Ele lia os livros de cabo a rabo, depois estudava as orelhas. Enfiava o dedo nelas e tentava tirar a cera cotidiana de cada escritor. Como eles faziam para ganhar a vida? O que eles tiravam de cada dia para comer? Só explicavam o que já haviam publicado, os prêmios que ganharam, mas eram jornalistas, médicos, advogados? Ninguém é só escritor.

E os livros não traziam a solução para sua própria vida. Assim como a janela aberta só trazia insetos voando. Ele procurava inspiração na frente do computador, e esperava escrever um texto com o título “A Estação dos Cupins”. Com certeza era uma crônica de seu cotidiano.

Ia escrevendo sobre isso, inspiração sobre a falta de inspiração, como ele e tantos outros já fizeram tantas vezes. Procurava as palavras certas para descrever seu estado. Procurava a palavra certa para descrever o móvel do seu computador. Rack, é isso, ele se lembrou de ler num folheto promocional. Atualmente as palavras vinham fugindo como asinhas deixadas para trás. Devia ser pelo copo ao lado do teclado, uísque barato, o fazia esquecer.

Até que outros vôos o fizeram se virar. Um ruflar de asas às suas costas o afastou dos cupins e fê-lo perceber que naquele apartamento entrara outro animal. Uma ave pousou em seu móvel. Um pássaro olhando para ele. Poderia ter sido um corvo, seria poético, mas ele era cronista, e um periquito foi tudo o que viu. Verdinho.

Sua velha mãe diria que aquilo era bom presságio, traria dinheiro. O periquito entrando em seu apartamento formava uma cena engraçada, era simpático, mas ele acharia mais bonito uma ave de agouro.

De qualquer forma, melhor do que escrever sobre cupins. Passou a escrever sobre a ave, mesmo achando que ela entrara lá apenas para se alimentar dos insetos. Será que periquito come cupim? Não são frutos, sementes ou folhas? Ele é que não iria alimentá-lo, não tinha fruta nem para si. Nas poucas vezes em que gastou dinheiro tentando ser saudável, a fruta apodreceu na geladeira. Pegou uma cerveja.

Começou a pensar que era mesmo estranho uma ave daquelas solta pela cidade. Devia ser animal doméstico, bem criado, não poderia ter vindo de longe. De repente daquele prédio mesmo, de outro andar. Interfonou o porteiro e perguntou:

“Me desculpe, alguém perdeu um periquito?”

“Como? O senhor está de brincadeira?”

“Entrou um periquito aqui no meu apartamento. Pousou no meu... no meu... na minha arara.”

Um periquito na arara. O porteiro não achou graça nenhuma. Ele também não, não achava, mas seu editor com certeza acharia. Era bem o que se esperava de uma crônica, “Periquito na Arara”. Achou que aquilo era um título melhor do que “Estação dos Cupins”. Continuou a escrever.

Mas não era uma arara. Não, aquela era outra palavra que voara de sua mente. Era uma dessas hastes para pendurar casacos e chapéus. Um cabideiro, talvez, ele pensava. Arara é maior, com cabides, para pendurar todo tipo de roupa. Então como será o nome daquele troço em que o periquito pousara?

Nessas horas, o dicionário não servia para nada. E ele não tinha ânimo para ligar para os amigos, para perguntar. Tinha certeza de que havia um nome mais apropriado do que “arara”, do que “cabideiro”, mas não conseguia encontrar. Terminou de escrever e decidiu deixar assim mesmo. Ao menos, arara com periquito formavam um par.

Mas o periquito logo voou para longe.

No dia seguinte, ele acordou indisposto, como acordava todos os dias, embora quase de tarde e embora quisesse continuar dormindo, o sol quente o obrigava a se levantar. Foi caminhar em volta do quarteirão, seguindo recomendações médicas, perder peso, cuidar do coração, exercícios aeróbicos, na Rua da Consolação.

A pressa dos outros o fazia nervoso, apressado também, embora não houvesse por que correr. Embora não houvesse sentido em caminhar, o médico dizia que sim. Ele continuava e andava devagar, atrapalhando a passagem dos outros, um inferno, ele tinha de se apressar. Não olhava a paisagem nem ouvia os ruídos. Olhava para dentro de si mesmo, construindo suas histórias, resgatando seu percurso, do apartamento até a rua, da infância até a adolescência, da faculdade até a decadência, a decadência atual. Não queria subir mais uma rua, desceu. E sem olhar percebeu que seus “cabideiros” passeavam logo à frente, velozes.

Era um vendedor, vendedor de cabideiros, araras, ou o que fosse. Era um jovem carregando aquelas hastes com braços. Com braços fortes e bronzeados, ia como os outros, apressado. Vendedor ambulante. E o velho cronista apressou o passo para encontrá-lo.

“Desculpe, o que você vende aí?”

“É para pendurar chapéu, gravata, 20 conto.”

“Sim, mas como se chama?”

“Meu nome?”

“Não, o nome disso aí que você vende.”

“Tem vários nomes, cada um chama de um jeito. Não sei direito. Eu só vendo.”

Perguntou então o nome do rapaz. De repente serviria para alguma coisa. De repente para sua crônica. Com aqueles braços fortes, vendendo cabideiros pela rua, em pleno verão, quando ninguém usava chapéus, muito menos casacos.

Voltou para casa, mas só voltou a escrever no final da tarde. Quando o calor abrandou um pouco, e os cupins voltaram com seus véus. Ele ficou olhando para a miríade e para o cabideiro, lembrando do periquito, do jovem, do efebo.

Seria melhor escrever sobre ele do que sobre o periquito, era mais poético, literário, ainda que cotidiano. Poderia talvez juntar todas as coisas, os cupins, as aves, o verão, o rapaz, estava tudo interligado. Poderia escrever sobre o rapaz subindo as ruas com os braços fortes, sem repouso. Carregando a haste de madeira sobre a qual todos poderiam descansar suas roupas. Todos tirariam as roupas pela haste daquele jovem rapaz. Não, assim já cairia para o erótico. Mas naquele verão era capaz. Ele penduraria todo o seu respeito de cronista sobre a haste daquele jovem rapaz.

E naquele final de tarde, onde ele estaria? Bebendo cerveja com uma boa companhia. Sonhando com um futuro glorioso, em que ele vestiria casacos, chapéus, gravatas. Um futuro que, para o cronista, nunca veio, embora ele também tenha sonhado. Embora ele também tenha sido jovem, embora ele também tenha tido braços fortes... mas nem tanto.

E a haste daquele jovem rapaz, onde estaria? Repousando ao seu lado. Assistindo ao final da tarde com a maior cara-de-pau. Sim, isso ficaria bem em sua crônica. O editor adorava trocadilhos. Ele colocaria mais uns sobre os braços da haste. E deixaria descansar os braços do jovem rapaz.

Mas então se lembrou de uma imagem antiga. Uma imagem que o copo de uísque não conseguiu diluir. Um longo tronco de madeira no final de um dia. Uma árvore velha no começo de um verão. Num final de tarde, saía a miríade de cupins de dentro dela, se espalhando por toda a região. Era de lá que vinham os cupins, de outros troncos, outras hastes, outras madeiras ao ar livre, que eles podiam chamar de lar.

Então, quem sabe, não era de lá? De dentro daquela haste que os cupins saíam. Dos braços do rapaz, do menino, do efebo. Quem sabe, os cupins não viriam direto dos braços do mancebo?

Finalmente recuperou a palavra. Mancebo. Era perfeito. Perfeito como sua haste rígida. Perfeito como seus braços fortes. Mas repleto de cupins em seu interior. Ele podia parecer firme enquanto jovem, mas, quando envelhecesse, sobraria apenas uma casca vazia. Apenas o pó da serragem sobre seus pés. Assim como o velho cronista...

Aquilo encerrava sua crônica. Uma imagem linda. Quase transcendia para um conto, mas não era isso que o jornal queria. Pouco importava. Era o que ele precisava escrever. Era o que ele precisava contar. Era o que ele precisava dizer... para o mancebo vendedor de si mesmo.

“Preciso te dizer uma coisa”, ele disse alguns dias depois. Foi difícil, mas nem tanto. Procurou o jovem em suas caminhadas, todas as manhãs. Logo o encontrou, quase na mesma rua. Com os braços nus pela regata, mas sem mancebos nos ombros ou em qualquer lugar.

“Mancebo. É esse o nome. Mancebo, é aquele troço que você vende.”

“Bem, bem, legal. Mas eu nem vendo mais aquilo. Foi só um bico, por alguns dias. Geralmente eu trabalho com realejo, só que tinha perdido meu periquito..."

Uma coisa

Conto de NOEMI JAFFE

Eu aprendi que qualquer coisa pode se transformar numa história interminável e infinita. A palavra tigre contém o conhecimento de um tigre, de todos os tigres, dos mamíferos, de sua história no planeta, do capim que eles comeram, dos insetos que comeram o capim – da idéia de eternidade contida nos insetos, por oposição à idéia de tempo, propriedade dos mamíferos. Será que então estaríamos condenados a não falar sob pena de que, ao dizermos qualquer palavra, estaríamos traindo a eternidade, o galope dos cavalos e tudo o que ainda não aconteceu? Ou, ao contrário, estaríamos livres para sempre dizer tudo o que quiséssemos, mesmo que aparentemente sem sentido nenhum, já que todas as palavras sempre conteriam todo o conhecimento do mundo e da humanidade? E será que então estaríamos sempre, a todo o momento, realizando o sonho da biblioteca de Babel, do livro dos livros, simplesmente ao falar, mesmo que seja “que horas são”? Tudo isso era porque eu queria contar um caso simples, que eu achei que, por ser tão simples e maternal, não teria estofo para preencher uma história. Foi então que eu lembrei que havia recentemente aprendido com meu fígado, com as coxas, com os cílios, que todas as histórias são intermináveis e contêm todas as outras que já foram, não foram, serão e não serão contadas, e então eu percebi que sim, que eu poderia contar esta história boba, porque ela conteria também as histórias que todas as mães contaram aos filhos nas casas das aldeias polonesas do século XII, e as histórias que os condenados ao calabouço pensaram antes de morrer, e as histórias que meus sucessores no futuro vão contar sobre um passado distante, quando um pio de passarinho ainda se misturava ao barulho de um motor velho de caminhão. E a história que minha filha me contou é que o pai dela um dia lhe disse que “nada é perfeito”. E ela, como era criança – e como as crianças acreditam na integridade das palavras dos adultos, porque para elas os adultos sempre dizem a verdade, sem saber que na verdade são elas, na sua crença, que são proprietárias da verdade que existe, e que consiste somente em acreditar nela e não em dizê-la, porque no momento em que você diz qualquer coisa você já está mentindo, mas não dizer e acreditar na verdade do que os outros dizem, aí é que está a verdadeira verdade –, ela, minha filha, acreditou que “nada é perfeito”. Mas como era possível que nada fosse perfeito? Se aquilo era verdade, como minha filha continuaria acreditando na verdade perfeita do que dizia o pai? Se tudo o que o pai diz é perfeito em si mesmo, independentemente do conteúdo, perfeito só na condição única de ser pronunciado por um pai, como pode então um pai dizer que “nada é perfeito”? Se essa frase é perfeita, por ter sido emitida pelo pai, o que resta do pai? E o pai, que desenha muito bem, desenhou um dos 101 Dálmatas para a minha filha. E o desenho era perfeito, idêntico ao dálmata que aparecia na figura do livro de histórias. E minha filha pensou que era impossível que nada fosse perfeito e entregou-se ao exercício de encontrar algum defeito no desenho do dálmata perfeito, porque seu pai lhe havia dito que nada é perfeito. Se ela achasse perfeito o desenho do dálmata, estaria traindo a verdade do pai. Se, respeitando-o, achasse o desenho do dálmata imperfeito, trairia então sua percepção da perfeição, seu amor à capacidade absoluta de seu pai de desenhar um dálmata perfeito.
É assim, eu imagino, e aqui fiz meu primeiro parágrafo nessa história que eu supunha interminável, mas que agora, por ter posto o parágrafo, percebi que se aproxima do fim, é assim que a credulidade se desequilibra, estremece o pomo da certeza e se transforma numa pergunta, metralhadora sagrada do medo, do sonho e da maldição. É assim, eu acho, e isso já soa como uma moral da história, mas eu não me importo nem um pouco que seja assim, porque eu não tenho nada contra morais de histórias, porque já que as histórias acabam, então que elas acabem alguma hora, e que pelo menos seja com algum pequeno ensinamento, para que a tristeza do fim de qualquer coisa e de qualquer história se carregue de alguma textura táctil e o homem que ouviu a história vá para casa pensativo e tome café e pense se ele quer mesmo trabalhar naquela noite e olhe para sua mulher que está lutando com a boca do fogão que não acende, com um carinho que voltou e logo vai desaparecer. Mas eu dizia que acho que é assim, com a instalação da dúvida como um cabo elétrico instalado por um eletricista numa criança, é assim que o tempo começa a atuar sobre o olhar curioso e o torna um pouco desconfiado. E é assim que nos tornamos temporais, fartamente solitários e amantes incompreensíveis da solidão, incapazes, como eu sou, de compreender a história infinita, o caso milenar que está a querer me contar aquele cruzamento de duas montanhas, uma mais alta e outra mais baixa, que eu vejo paradas no horizonte. Elas estão falando, ouço o eco de uma história silenciosa, que contém toda a verdade do tempo, das histórias, das palavras e do silêncio. Mas eu não consigo ouvir.

Uma pausa na brincadeira



Eram quatro. Quatro das tantas espinhas, dos tantos sabores. Quatro de um mesmo sexo, mas diferentes rancores. Histórias. Amores.
Quatro de uma mesma roda de cerveja quente e do maço de Marlboro light amassado pelas horas de bolso.
Eram os quatro dos centavos, das altas risadas, do não dito. Eram atores, os melhores esconderijos numa brincadeira intermitente e mascarada. Se errada ou certa? Há dúvidas. Porém, era deles e, portanto, necessária.

Tudo isso até aquela noite, onde um deles decide iniciar um assunto jamais discutido:
- Lembro bem, um jovem casal se beijava no metrô naquele dia. Na estação seguinte, um outro de idade mais avançada discutia o preço da conta telefônica aos berros. E para minha surpresa, ao descer no Trianon, ouço dois velhinhos reclamando do cansaço de uma relação de tanto tempo.
- Aonde quer chegar? – pergunta o amigo ao seu lado esquerdo de all star cano longo vermelho.
- Nem eu sei ao certo. Mas olho para tudo e ao mesmo tempo sou mais cego que todos. Em apenas três estações, foi inevitável minha necessidade de indagação. Será que realmente é possível existir o que chamamos de amor? Será que tudo isso não é apenas uma questão de companheirismo, respeito, sei lá!
- Você e seus questionamentos. Já pensou em viver ou se arriscar em uma experiência assim? – diz o amigo a sua frente de calça xadrez avermelhada.
- Acha que não vivo?
- Não acho.Hoje, tenho certeza.
-Por que diz isso?
- Sua covardia impressiona qualquer um.
- Covardia ou indiferença?
- Pensando em você, total covardia, pois todos aqui sabemos de suas vontades. E já chegou a conquistar alguma?
- Não conquisto, pois senão deixariam de ser vontades.
- Ah! É mesmo?
-Pois claro que sim! A vida sem vontades, sem desejos perde o sentido. Ficamos sem propósito.
- E a vida sendo só vontades e desejos?
- Talvez assim eu seja mais feliz. Diferente de você, que se diz a coragem em pessoa, mas transita entre homens e mulheres sem jamais ter tido uma relação de mais de um dia.
- E o que foi a Aninha?
- Aos seus 14 anos. Nossa ! Quanta experiência deve ter adquirido, hein?
-Pois claro que adquiri. Foi ela quem me ensinou o que era mulher, o sexo, o desejo.
- Certamente. Um sexo de um minuto e meio torna-se o responsável pelo seu vasto repertório de experiências.
- Você é ridículo, pois então permaneça no seu mundo de nuvens – diz em voz baixa segurando o copo americano junto a uma cara de desdém ao amigo covarde.
Até o silenciar da conversa, aquele do all star vermelho e o amigo a sua frente de camiseta regata preta acompanhavam boquiabertos a profundidade da discussão:
- Começou a punhetagem intelectual. Vamos beber e falar das “chicas” que ganhamos mais com isso – apazigua o regata preta em tom de deboche.
- Mas tamanha pertinência! Uma puta discussão legal e vem você cortando a brisa! – responde o all star acidamente.
- Mas é sério cara! Vocês discutem pormenores, frases, aspectos, detalhes absurdamente irrelevantes.
- Por não sermos indiferentes como você é a essas questões não nos pode considerar detalhistas ou irrelevantes.
- Não são apenas detalhistas, mas extremistas, fatalistas...uma longa lista.
- Então, diz que sua indiferença te satisfaz?
- Totalmente, eu ajo conforme minhas vontades, meus anseios. Não penso milhares de vezes. Não me digo corajoso, muito menos covarde. Sou apenas alguém que não perde o tempo tentando se definir.
- Retórica perfeita. Mas até que ponto podemos acreditar? Todo mundo se questiona, isso é humano.
- Eu não me questiono, eu faço.
- Não acho que seja mais feliz por isso. Lembro muito bem aquele porre que você tomou na festa do Rafa e queria socar o cara que estava beijando a Paty. Ficava batendo no peito, parecia um gorila.
- Foi escroto esse dia!- complementa o amigo covarde.
- Não acho que isso diga nada. Eu posso até ter exagerado no meu argumento. Talvez, me questione, mas busco sempre não fazer isso, pois acabo excluindo minhas vontades.
O covarde se levanta apoiando na cadeira:
- Pois então, qual a diferença dele pra mim?
- Você sonha apenas. Eu sonho sempre, mas viso concretizar aquilo que desejo.
- E quantas vezes pode dizer que conseguiu?
- Poucas.
-Assim como eu.E qual a diferença?
- Nenhuma?
Um silêncio permanece, tempo este dado para o encher dos copos. O do all star finalmente resolve palpitar:
- Pois então, eu sou inerte.
- Como assim? – pergunta o de calça xadrez avermelhada.
- Eu pouco faço, não penso nessas questões. Quando faço é por que tudo deu absurdamente certo. Não sei se tenho vontade, se ajo por impulso.
- Uau!!- interrompe o de regata preta.
- Sou como uma pedra. O sexo para mim vem sempre em segundo plano. Meu prazer não se encontra numa penetração, num encontro perfeito. Mas, ao mesmo tempo, não sou indiferente a isso.
- Não entendi – complementa o covarde.
- Sei lá, tenho um pouco de cada um de vocês, não sou definível. Me considero inerte, pois não faço as coisas acontecerem. Mas não sou apenas indiferente, eu também sou. Sou corajoso em determinadas situações e covardes em muitas outras.
- Talvez, todos sejamos assim. Mas cada um prioriza uma característica, o que fez sermos quem somos. Bastante diferentes, mas talvez iguais ao mesmo tempo. Numa mesma proporção ou de formas totalmente opostas – sintetiza o de regata preta.
- E quanto ao amor? – pergunta o de calça xadrez acendendo um cigarro.
- Existe – covarde.
- Não existe – regata preta.
- Não sei – all star vermelho.
- Não quero ter certeza disso. Sentimentos não se alojam em existes ou inexistes. Não há uma única resposta. Temos as nossas e sempre serão bem diferentes das dos outros – calça xadrez avermelhada.
- E que bom! – enfatiza o covarde.
Os quatro ficaram ali por mais uma hora. Quando olharam em seus quatro relógios totalmente diferentes e viram algo semelhante:
- Vamos embora! Minha mãe vai me comer vivo!
E nunca mais voltaram nesse assunto.


Lucas G.