domingo, 1 de março de 2009

O vendedor de mancebos

Santiago Nazarian

O verão lhe trazia um ultimato. Vinha voando pela janela aberta e deixava para trás véus de uma cerimônia que eles não tinham. Sem cerimônia, os cupins invadiam seu apartamento, devoravam seus móveis, o deixavam cada vez mais próximo do chão. O chão também era de madeira, isso o fazia pensar que, em breve, ele afundaria num buraco sem fundo. E não era nada poético pensar assim.

Ele era cronista, e isso lhe trazia cada vez mais vergonha. Não estava esclarecendo os fatos, como seus colegas jornalistas, nem sublimando-os, como seus amigos escritores. Ele tinha compromisso com a verdade, mas essa não poderia lhe salvar. Ele observava o mundo pela sua janela aberta e o mundo era cinza, poluído, dava de frente para uma construção que nunca terminava e onde não havia nada para olhar, apenas sons a martelar.

Ainda assim, tinha de manter a janela aberta, não apenas para a observação de suas crônicas, mas pelo verão que esquentava o apartamento sem ar-condicionado e que o sufocava com promessas de dias ainda piores, ainda mais quentes, ainda mais baixos.

Os cupins entravam em busca da luz acesa e da madeira latejante, então ele apagava a luz e esperava que o compensado de seus móveis não abrisse grandes apetites, mas abria. E a luz fria da tela do computador queimava seus olhos, quando a luz quente do teto não podia acalmá-la. E a luz quente do teto dançava com os véus sendo jogados e os cupins caindo ao seu lado e tudo o que ele queria era um inverno para desistir. Mas o verão lhe trazia um ultimato.

Ele teria de terminar aquela crônica antes de os cupins o colocarem no chão. Ele teria de terminar aquela crônica antes que o mês virasse e o afundasse nas contas do mês seguinte e ele não pudesse mais adiar sua morte, porque ele não teria como sobreviver. Era preciso escrever.

Formado em jornalismo, envelheceu sem nunca conseguir exercer. Viveu de uma série de bicos, às vezes até com qualidade, formando um currículo que só poderia fazê-lo gabar-se de sua cultura, de suas leituras, de saber escrever. Coisas que nenhum editor poderia medir. Coisas que valem muito pouco quando ninguém realmente sabe ler.

Ele lia os livros de cabo a rabo, depois estudava as orelhas. Enfiava o dedo nelas e tentava tirar a cera cotidiana de cada escritor. Como eles faziam para ganhar a vida? O que eles tiravam de cada dia para comer? Só explicavam o que já haviam publicado, os prêmios que ganharam, mas eram jornalistas, médicos, advogados? Ninguém é só escritor.

E os livros não traziam a solução para sua própria vida. Assim como a janela aberta só trazia insetos voando. Ele procurava inspiração na frente do computador, e esperava escrever um texto com o título “A Estação dos Cupins”. Com certeza era uma crônica de seu cotidiano.

Ia escrevendo sobre isso, inspiração sobre a falta de inspiração, como ele e tantos outros já fizeram tantas vezes. Procurava as palavras certas para descrever seu estado. Procurava a palavra certa para descrever o móvel do seu computador. Rack, é isso, ele se lembrou de ler num folheto promocional. Atualmente as palavras vinham fugindo como asinhas deixadas para trás. Devia ser pelo copo ao lado do teclado, uísque barato, o fazia esquecer.

Até que outros vôos o fizeram se virar. Um ruflar de asas às suas costas o afastou dos cupins e fê-lo perceber que naquele apartamento entrara outro animal. Uma ave pousou em seu móvel. Um pássaro olhando para ele. Poderia ter sido um corvo, seria poético, mas ele era cronista, e um periquito foi tudo o que viu. Verdinho.

Sua velha mãe diria que aquilo era bom presságio, traria dinheiro. O periquito entrando em seu apartamento formava uma cena engraçada, era simpático, mas ele acharia mais bonito uma ave de agouro.

De qualquer forma, melhor do que escrever sobre cupins. Passou a escrever sobre a ave, mesmo achando que ela entrara lá apenas para se alimentar dos insetos. Será que periquito come cupim? Não são frutos, sementes ou folhas? Ele é que não iria alimentá-lo, não tinha fruta nem para si. Nas poucas vezes em que gastou dinheiro tentando ser saudável, a fruta apodreceu na geladeira. Pegou uma cerveja.

Começou a pensar que era mesmo estranho uma ave daquelas solta pela cidade. Devia ser animal doméstico, bem criado, não poderia ter vindo de longe. De repente daquele prédio mesmo, de outro andar. Interfonou o porteiro e perguntou:

“Me desculpe, alguém perdeu um periquito?”

“Como? O senhor está de brincadeira?”

“Entrou um periquito aqui no meu apartamento. Pousou no meu... no meu... na minha arara.”

Um periquito na arara. O porteiro não achou graça nenhuma. Ele também não, não achava, mas seu editor com certeza acharia. Era bem o que se esperava de uma crônica, “Periquito na Arara”. Achou que aquilo era um título melhor do que “Estação dos Cupins”. Continuou a escrever.

Mas não era uma arara. Não, aquela era outra palavra que voara de sua mente. Era uma dessas hastes para pendurar casacos e chapéus. Um cabideiro, talvez, ele pensava. Arara é maior, com cabides, para pendurar todo tipo de roupa. Então como será o nome daquele troço em que o periquito pousara?

Nessas horas, o dicionário não servia para nada. E ele não tinha ânimo para ligar para os amigos, para perguntar. Tinha certeza de que havia um nome mais apropriado do que “arara”, do que “cabideiro”, mas não conseguia encontrar. Terminou de escrever e decidiu deixar assim mesmo. Ao menos, arara com periquito formavam um par.

Mas o periquito logo voou para longe.

No dia seguinte, ele acordou indisposto, como acordava todos os dias, embora quase de tarde e embora quisesse continuar dormindo, o sol quente o obrigava a se levantar. Foi caminhar em volta do quarteirão, seguindo recomendações médicas, perder peso, cuidar do coração, exercícios aeróbicos, na Rua da Consolação.

A pressa dos outros o fazia nervoso, apressado também, embora não houvesse por que correr. Embora não houvesse sentido em caminhar, o médico dizia que sim. Ele continuava e andava devagar, atrapalhando a passagem dos outros, um inferno, ele tinha de se apressar. Não olhava a paisagem nem ouvia os ruídos. Olhava para dentro de si mesmo, construindo suas histórias, resgatando seu percurso, do apartamento até a rua, da infância até a adolescência, da faculdade até a decadência, a decadência atual. Não queria subir mais uma rua, desceu. E sem olhar percebeu que seus “cabideiros” passeavam logo à frente, velozes.

Era um vendedor, vendedor de cabideiros, araras, ou o que fosse. Era um jovem carregando aquelas hastes com braços. Com braços fortes e bronzeados, ia como os outros, apressado. Vendedor ambulante. E o velho cronista apressou o passo para encontrá-lo.

“Desculpe, o que você vende aí?”

“É para pendurar chapéu, gravata, 20 conto.”

“Sim, mas como se chama?”

“Meu nome?”

“Não, o nome disso aí que você vende.”

“Tem vários nomes, cada um chama de um jeito. Não sei direito. Eu só vendo.”

Perguntou então o nome do rapaz. De repente serviria para alguma coisa. De repente para sua crônica. Com aqueles braços fortes, vendendo cabideiros pela rua, em pleno verão, quando ninguém usava chapéus, muito menos casacos.

Voltou para casa, mas só voltou a escrever no final da tarde. Quando o calor abrandou um pouco, e os cupins voltaram com seus véus. Ele ficou olhando para a miríade e para o cabideiro, lembrando do periquito, do jovem, do efebo.

Seria melhor escrever sobre ele do que sobre o periquito, era mais poético, literário, ainda que cotidiano. Poderia talvez juntar todas as coisas, os cupins, as aves, o verão, o rapaz, estava tudo interligado. Poderia escrever sobre o rapaz subindo as ruas com os braços fortes, sem repouso. Carregando a haste de madeira sobre a qual todos poderiam descansar suas roupas. Todos tirariam as roupas pela haste daquele jovem rapaz. Não, assim já cairia para o erótico. Mas naquele verão era capaz. Ele penduraria todo o seu respeito de cronista sobre a haste daquele jovem rapaz.

E naquele final de tarde, onde ele estaria? Bebendo cerveja com uma boa companhia. Sonhando com um futuro glorioso, em que ele vestiria casacos, chapéus, gravatas. Um futuro que, para o cronista, nunca veio, embora ele também tenha sonhado. Embora ele também tenha sido jovem, embora ele também tenha tido braços fortes... mas nem tanto.

E a haste daquele jovem rapaz, onde estaria? Repousando ao seu lado. Assistindo ao final da tarde com a maior cara-de-pau. Sim, isso ficaria bem em sua crônica. O editor adorava trocadilhos. Ele colocaria mais uns sobre os braços da haste. E deixaria descansar os braços do jovem rapaz.

Mas então se lembrou de uma imagem antiga. Uma imagem que o copo de uísque não conseguiu diluir. Um longo tronco de madeira no final de um dia. Uma árvore velha no começo de um verão. Num final de tarde, saía a miríade de cupins de dentro dela, se espalhando por toda a região. Era de lá que vinham os cupins, de outros troncos, outras hastes, outras madeiras ao ar livre, que eles podiam chamar de lar.

Então, quem sabe, não era de lá? De dentro daquela haste que os cupins saíam. Dos braços do rapaz, do menino, do efebo. Quem sabe, os cupins não viriam direto dos braços do mancebo?

Finalmente recuperou a palavra. Mancebo. Era perfeito. Perfeito como sua haste rígida. Perfeito como seus braços fortes. Mas repleto de cupins em seu interior. Ele podia parecer firme enquanto jovem, mas, quando envelhecesse, sobraria apenas uma casca vazia. Apenas o pó da serragem sobre seus pés. Assim como o velho cronista...

Aquilo encerrava sua crônica. Uma imagem linda. Quase transcendia para um conto, mas não era isso que o jornal queria. Pouco importava. Era o que ele precisava escrever. Era o que ele precisava contar. Era o que ele precisava dizer... para o mancebo vendedor de si mesmo.

“Preciso te dizer uma coisa”, ele disse alguns dias depois. Foi difícil, mas nem tanto. Procurou o jovem em suas caminhadas, todas as manhãs. Logo o encontrou, quase na mesma rua. Com os braços nus pela regata, mas sem mancebos nos ombros ou em qualquer lugar.

“Mancebo. É esse o nome. Mancebo, é aquele troço que você vende.”

“Bem, bem, legal. Mas eu nem vendo mais aquilo. Foi só um bico, por alguns dias. Geralmente eu trabalho com realejo, só que tinha perdido meu periquito..."

Nenhum comentário: