segunda-feira, 29 de novembro de 2010

E se...

E se te quero, por favor, não pense,
Pois quando sofro, regurgito verbos.

Não ataco, colho flores e olho céu.
Do todo pequeno, cresci de recortes.
Sou partes,
sou apenas, contudos e entatos.

Não faço sentido,
eu blasfemo.
Finjo não olhar,
e no escuro, escorro vermelho.

E se te falta,
sonho o toque,
recolho-me,
ululo e
prometo preencher suas ranhuras,
reescrever seus parágrafos.
Arrancar sorrisos. Nunca meus.

E se te choro,
afago cartas em copos de pinga,
recolho véus
e gasto aquarelas.

E se te minto,
faço por não ter noites a pensar,
faço incompreendido,
faço pelo prazer de desconfiar,
faço por poesias e redundâncias.
Meu hedonismo, sua juventude.

E se te corto,
abro um caderno velho
e escrevo que o melhor amor é aquele que nunca existiu.

E se te tenho...

Lucas G.

domingo, 28 de novembro de 2010

Tabacaria / Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

Indicação preciosa, caro Bruno Flaixer!

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Páginas frias

Desconheceu metáforas por
anos de ardência.
Em cima da cama,
debaixo da mesa,
em perfumes e canetas.
Em nuvens.
No inverno.

Um corpo.
Seu corpo.
As mãos, apunhalavam carícias.
No peito, o desejo de uma vida longe de tudo.
Longe de si.
Daquilo.
Do que seria.

O passado ainda não tinha feito páginas e
ele ainda não tinha chorado.
Rascunhava um texto,
indolor, de página única e seu personagem já não tinha nome.

Da primeira palavra, escorreu amor de forma juvenil.
Pelo recente, desconhecia sentimentos.
E se deliciou nas suspeitas,
num bombear silencioso,
em lembranças de luas e jangadas.

Início errado?
O pequeno começava apenas a acreditar.
Das corridas, um gozo.
De porradas, sua forma.
De poemas, os sonhos.

Ele amava assim.
Um romântico em potencial,
um sádico ou um louco?

E por anos, calado permaneceu.
Numa noite, deu um nome.
Especificou aquilo que ele tão pouco sabia.

Na tarde seguinte,
a porra esfriava em cima da pia,
os textos haviam sido cortados,
os poemas, agora, em sátiras.
E o tão pequeno ainda não entendia.
E , talvez, nunca entendeu.

Vieram anos,
e ele murmurou já em ápices de insanidade:
seria o vento lá fora? Ou a janela sempre esteve fechada?
Não se via.
Se culpava.
Tinha aprendido a amar assim.

No vigente,
descobriu que o distante novamente se aproxima.
O inexistente tão tácito no recente,
fará vida em confins. Em corpos de outras terras.
Tentará outro nome.

E o pequeno sempre rasurado, terminará em folhas frias.
Buscando alguém que possa colocar cor no grafite de tempos antigos.


Lucas G.

domingo, 14 de novembro de 2010

Armando e Rogério

Do Armando ela tinha a companhia. Uma tarde no cinema, um café depois , quem sabe uma cerveja. Com ele, ela conseguia conversar sobre seus problemas financeiros, as crises na família e a vontade de ser mãe.
Ela falava de seus livros e ele de seu amor por carros. Ela reparava em mendigos e ele pulava poças.
Uma manhã no Ibirapuera, beijos na nuca e cafunés. Ao deixá-la em casa sempre seu celular tocava: "Boa noite querida! Durma bem, amanhã te ligo.
E Armando ligava.


Rogério a consternava. Dois anos mais novo e morava com os pais. A cama como a melhor poesia. Arquitetavam posições em ângulos sexualmente perfeitos. O tempo inexistia e o ápice era atingido todas as vezes.Em horas ou segundos. Sua boca, os pêlos de seu peito, ela tinha vontade de ter aquilo por dias. Semanas. Ela queria poder ligar, queria mandar mensagens ou passar tardes no Ibirapuera.
Mas Rogério sumia.
A conversa dos dois era feita de corpo, suor e altas dosagens alcóolicas. Denso o suficiente para quase esquecer preservativos. Intenso , percorria distâncias. Partindo sempre dela. Ela estudava horários, buscava alguma brecha, um resto de salário.
Ele desmarcava.


Armando e Rogério. A companhia de um, o sexo do outro. Ela: mulher formada, independente, de casa alugada e viagem planejada no final do ano. Ela: amante de coração infantil, vagava nas promessas de Rogério, se divertia com os comentários de Armando. Cada um, saciava uma particularidade, acalmava seu interno ainda tão imaturo. Não decidia e não pedia mudanças, vivia esperando mensagens de Rogério e acalentava as ligações de Armando.


Dessa forma, ela conseguia o status de menina-mulher. Uma auto aprovação, uma brincadeira feita por ela e com ela mesma, uma forma encontrada de se vangloriar dizendo ser adepta aos relacionamentos abertos. Ela não era.


Na aparência ou na arrogância. Na incerteza ou no orgasmo. Na completude ou no inato. Até que a morte os separe.


Ela já não sonhava com vestidos brancos.

Lucas Galati

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Meu ladrão, o nunca.

Desse todo tão pequeno,explorei garranchos de alta estatura. Já provei sabores de outras terras, fui atrás daquilo que não conhecia. Longe da alma de aventureiro e léguas das descrições de horóscopo. Sim, sagitariano e só. Do signo, característico apenas minha intransigência. Diria melhor, minha inconstância. No entanto, desde quando astros podem falar de mim.
Não satisfeito, caminho.
Relembrar, sangra
e quando perfura,
sofro. Sozinho.
Nesse caminho, me faço egocêntrico e consciente de meu escudo. Seria esse humano tão enfadonho em falar de seus próprios sentimentos? Seria niilista um jovem colecionador de nostalgias? Afirmo minhas pífias experiências, mas o que poderia eu escrever senão aquilo passado, o que tanto teria pra dizer aos outros senão que amo. Que sofro. E que, de certa forma , aprendi a dizer . Não por respostas, mas perguntando.

Delimitar um começo? A primeira vez que ele me roubou tudo. Ele me roubou o Chico,o Tom e o Vinicius. Ele tirou todo o sabor de minha Clarice e me proibiu de ler Kafka.
Se aponto um final? O dia em que conseguir ter tudo isso de volta.

Crescer é se desconhecer. Cada dia um pouco mais. Deitar em sua cama já com os cabelos todos brancos e não ter resposta alguma. Não saber dizer se foi bom e sentir vontade de começar de novo.
A vida brinca com os sujeitos da vida. Cabe a nós entender que o tempo só finda abaixo da terra e que ser humano será sempre duvidar.
E que o final sempre se deu na palavra nunca.


(texto dedicado a Juliana Yzumida que numa tarde relembrou um lado meu esquecido em asfalto)

Lucas G.

domingo, 7 de novembro de 2010

Metade Oswaldo Montenegro

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

NÃO SE MATE Carlos Drummond de Andrade

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor, no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.