domingo, 31 de maio de 2009

Doença sem causa ou Retrato de uma mulher doente

E aquela mulher estava doente. Doença sem cura. Não precisava de remédios. Nunca se importou com sapatos novos, não tinha pressão alta e sua família , na medida do possível, sempre teve tudo ao seu alcance.
Aquela mulher não queria viagens, pois as tinha. Não mais como as do passado, mas se contentava com idas á hotéis fazendas e as lembranças dos momentos vividos em Paris eram suficientemente reconfortantes.
Fato era que aquele incômodo não podia ser simplificado. Estava longe de depressão, síndrome do pânico ou histeria. Já tivera úlceras, sarampo e catapora. Sua doença, agora, era incompleta. Era indefinível. E quase sem sintomas.

A mulher era independente, já tivera o prazer da maternidade, tinha até plantado uma árvore. O livro não havia escrito ainda, pois achava sua vida desinteressante e a falta de tempo inibia a realização de páginas concretas. Às vezes, pensava em alguns capítulos, mas nada muito sólido.
Solidez tinha apenas em saber que estava doente.
Aos outros, caracterizava-a como a doença do espelho. Tinha medo de ser a primeira, acalmava-se junto aos goles de uma vodca bem gelada, onde apenas nesses instantes, enxergava o incomodo como obsoleto. E esquecia.

Porém, bastava deitar na cama. Era necessário apenas um ronco de seu marido ou uma resposta atravessada de seu filho para que o coração saltasse e ela tivesse certeza que doente permanecia.
Nesses momentos, corria ao banheiro e acendia um cigarro guardado as sete chaves na ultima gaveta do armário perto da privada. Sentava e fumava. Fumava e esvaia. Com medo, olhava no espelho apoiando as mãos na pia e sentindo o mármore gelado. Olhava fundo e da fina camada de vidro nada via.

Se via mulher, mulher já nos seus cinqüenta anos. Realizada, ativa e vivida. Concentrava-se até a veia saltar na testa. Para aquela mulher, um reflexo inexistia. Todas as noites eram iguais. Uma trepada, já não tão gostosa. Um abraço, já sem tanto carinho. Uma conversa, de poucas palavras.O silenciar de seus filhos. O preparo da janta e a marmita na geladeira. Ela era uma intrusa dentro de sua própria casa e nunca se absteve de nada. Buscou saber, quis conversar, tentou melhorar.
Aquela mulher já não se sentia. Era como a fumaça de seu cigarro noturno.Insólita, volátil e efêmera, fez de tudo para ver um erro seu, algum estopim causador da situação em que vivia. Mas nada. Absolutamente nada. Não houveram erros ou falhas.

Sua doença não estava na cabeça e seu corpo invejava meninas de trinta. Porém, ela era meia. Há muito não experimentava de extremos, tinha esquecido a ultima vez que se sentiu completa. Aquela mulher não tinha reflexo, pois vivia uma vida intrusa, vasculhando nas lembranças do passado razões para o presente, ou possíveis acertos nostálgicos aplicáveis na sua rotina doente.

Aquela mulher estava de cama. De uma doença sem causa. E sem causas, vivia. Nos cigarros e nas mãos trêmulas, em intimidades e retrocessos, em incômodos e culpas. De carne, osso e veia na testa, mas longe do reflexo e de uma possível completude.Sabia apenas que amanhã, entre fumaças e goles de vodca, uma outra lágrima escorreria.

Lucas G.

Nenhum comentário: